JAQUELINE DA SILVA ROCHA
Resumo
Este ensaio se
propõe a discutir a importância de valorização dos escritos sobre África a
partir de produções africanas. Visibilizar a gritante necessidade de
aprofundamento sobre o continente africano e seu povo a partir de seus reais
experienciadores, levando em consideração as inúmeras produções existentes e as
restritas limitações ao acesso desse material, o que não desfaz sua existência.
A discussão se inicia a partir do processo histórico de “roedura” do continente
africano com a exposição de produções de Leila
Maria Gonçalves Leite Hernandez, com o contexto histórico de pastilha do continente
africano, Paulin J. Hountondji, abordando sobre as perspectivas dos estudos africanos
além de Chimamanda Ngozi Adichie, dentre outros.
Palavras chave: África, Processo de “roedura”, Visibilidade às produções africanas.
Para compreender
como se deu o processo de configuração do território africano, é imprescindível
recorrer as tomadas de territórios ocorridas no passado e alguns dos principais
eventos que levaram a esse estopim. Inicialmente foram estruturados os
parâmetros de efetivação de tratados e acordos entre líderes europeus e
africanos, cujos principais e reais interesses apresentavam-se de forma oculta
nos discursos proferidos durante tais acordos. João Neto (2013) salienta que:
“o processo de
esfacelamento do continente africano deveu-se também a centenas de outros
tratados comerciais, acordos e negociações envolvendo europeus e líderes
regionais africanos ao longo do período colonial” (NETO, 2013, p. 2-3).
Com isso não é
difícil compreender como se configurou até o ponto efetivo dessas ações.
O continente
africano despertava bastante interesse nos europeus levando em consideração
seus destaques nas viagens expansionista que faziam no decorrer dos séculos.
“Incentivados
pelo projeto expansionista português, “viajantes-exploradores” eram financiados
pelo rei e saiam em viagens e expedições em busca de divisas para Portugal.
Desta forma, o continente africano logo se constituiria em uma importante rota
de comércio de escravos, metais, especiarias, etc., vindo a despertar o
interesse de outras nações europeias.” (NETO, 2013, p. 3).
Com todo esse
processo de exploração tornando-se efetivo no território africano os resultados
devastadores não tardariam para a aparecer, as consequências estarrecedoras são
experienciadas por seus nativos até os dias atuais, seja nas perspectivas
sociais, culturais e/ou econômicas.
Ainda assim, é
possível destacar os interesses capitalistas incutidos nos trâmites europeus,
porém é visível que alguns desses interesses também se faziam presentes na
mentalidade africana, inúmeros exemplos- que serão explorados logo mais-
demonstram a ótica compreendida e assimilada pelos africanos na intenção não
apenas de assinar tratados, mas também de lucrar de alguma forma com esses
acordos, seja no quesito comercial, seja no quesito territorial. No entanto a
partir dos desdobramentos com que se configurou os trâmites é visível que os
maiores beneficiários tenham sido os europeus uma vez que:
“Os inúmeros
tratados acerca da questão territorial de África teriam contribuído para o
maior esfacelamento do continente. Desconsiderando as perspectivas de direito
dos povos africanos e as suas especificidades históricas, religiosas, étnicas,
linguísticas, etc., diversos países da Europa repartiram entre si o continente
africano.” (id.Ibid., p.3).
As consequências
dessas ações são visíveis inclusive nos dias atuais, onde o preconceito com a
cultura, a religião dentre outros aspectos são marcantes, sem contar os danos
irreparáveis deixados nos pilares econômicos do continente africano.
Na produção A África na sala de aula: O processo de “Roedura” do continente e a
conferência de Berlim, Leila Hernandez destaca quatro principais motivos
que levaram ao processo de ocupação territorial dos espaços africanos, o
primeiro deles foi segundo a autora baseado nos interesses do rei
Leopoldo II da Bélgica que teria “o objetivo de fundar um império ultramarino subsumido
numa imagem de missão filantrópica forjada pelo rei da Bélgica” (HERNANDEZ,
2008, p.59), o discurso do rei transmite segurança e apoio ao assinante,
deixando em evidência sua possível disposição em pacificar relações de comuns
interesses. O terceiro grande motivo citado ainda pela autora “foi o
expansionismo da política francesa expresso na participação da França com a
Grã- Betânia no controle do Egito, em 1879” "(id.Ibid.,p.59), esta
comercialização dos seus acordos propunha apoio e definições políticas mais
democráticas, porém definições distintas escondiam-se por trás desses tratados.
O quarto objetivo se estabelecia
basicamente pelos:
“interesses em torno da livre
navegação e do livre comércio nas bacias do Níger e do Congo, manifestado de
forma explícita, sobretudo pela Grã-Betânia, que alimentava o sonho de um
domínio do Cabo ao Cairo"(id.Ibid., p.61).
É importante destacar que não apenas
aspectos políticos se faziam presente nesses conjuntos de interesses, que
vários foram os métodos utilizados para a tomada de ocupação do território
africano. Os aspectos religiosos, por exemplo, foram de cunho especialmente
importante uma vez que a catequização de comunidades africanas seria uma forte
ameaça para a instabilidade religiosa e obviamente um importante instrumento
para os missionários e seus enviados.
A justificativa de catequizar
sustentava-se na argumentação de que a intenção seria a salvação da alma e:
“pôr termo aos massacres de negros” (HERNANDEZ, 2008,
p. 53), ocultavam-se os reais objetivos e planos, um dos mais pertinentes
seria “pregação contrária a uma série de ritos sagrados locais, o que minava a
influência dos chefes tradicionais africanos"(id.Ibid., p.54).
Ou seja, não apenas perspectivas
políticas estavam em jogo, mas também religiosas e econômicas, a busca pela
ocupação territorial, deflagrou não apenas a tomada de territórios (processo de
“roedura”, assim intitulado pela autora), mas também deu início a conflitos
diretos, com a reação das comunidades africanas sobre o objetivo de impedimento
do processo de exploração e tomada territorial.
Vale salientar que alegar um tipo de
ingenuidade por parte das comunidades africanas é acima de tudo expor uma
fragilidade quanto ao conhecimento sobre África. Afinal, foram inúmeras as
barreiras de resistências lideradas por chefes representantes das Comunidades
africanas na intenção de impedir que os europeus tomassem pra si todo o poder, Hernandez
(2008) irá mapear alguns dos exemplos:
“houve reação de confronto a
confronto, ou seja, que os africanos não se resignaram pacificamente a ela,
defendendo seus costumes e interesses vitais com a soberania, a liberdade e a independência”
(HERNANDEZ,
2008, p. 86).
O artigo produzido por Paulin J. Hountondji
(2008), traduzido para o português intitulado, Conhecimento de África,
conhecimento de africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos, traz
à tona a discursão sobre a fidelidade das produções sobre os estudos africanos
e até onde estes estudos estão sobre efeito de pesquisas extravertidas. Também
trará para o campo das discursões, críticas que são atribuídas sobre as
fronteiras e limitações dessas produções. Revela que muitos estudos sobre a
África, cuja publicação é em território africano, possuem propagação restrita,
o que não diverge muito das produções estrangeiras, porém com menor intensidade,
onde esses conhecimentos não chegam na África. Esse artigo pode ser relacionado
com a estrutura que Chimamanda
Ngozi Adichie em seu discurso conferido ao Technology;
Entertainment; Design, em português Tecnologia; Entretenimento e Design ou
simplesmente TED,
em 2009 intitulado O perigo de uma
história única irá dizer que:
“A consequência da história única é a
seguinte: rouba-se a dignidade das pessoas. Dificulta o reconhecimento da nossa
humanidade compartilhada. Enfatiza o quão diferentes somos em detrimento de
quão iguais somos”. (ALVES; ALVES apud NGOZI, 2013, p.6),
ou seja, o que Chimamanda está
esclarecendo aqui é que existe uma linha tênue entre o que são as mais diversas
histórias de uma sociedade, a forma como essas histórias são apontadas e o mais
importante quem aponta essas histórias? Tudo isso faz muita diferença na
maneira como podemos enxergar as civilizações nas suas mais diversas
particularidades.
Hernandez (2008), também reforça a
necessidade de conceder espaços para que estudos africanos sejam pesquisados e
escritos por africanos, que é necessário ouvir a versão de África da África,
não se propõem aqui uma avaliação qualitativa categórica de quem produz mais,
ou melhor, mas como declarou a ativista Joice Berth em entrevista ao Jornal
Nexo em Janeiro de 2017 “Se você não dá espaço para as pessoas contarem como é
sua vida a partir da experiência delas, a experiência vai ser o homem branco,
que é privilegiado da sociedade.”(BERTH, 2017) Ou seja, é preciso conceder voz
e vez para que uma versão não se sobressaia sobre a outra de modo que o direito
democrático não seja exercido, e práticas injustas sejam prevalecidas.
Esses estudos sobre a África levam a
questionar a forma como são abordadas essas temáticas nos livros didáticos, a
maneira como o conhecimento sobre o continente africano chega nas salas de
aula. Existem várias versões sobre África que pouco ou nada se aprofundam, a
leitura da África pobre, miserável, da África com dominação de enfermidades é a
que as mídias e muitos livros vendem. Mas tem um agravante que deve ser exposto,
em uma breve pesquisa nos livros didáticos nota-se que normalmente existem três
situações em que a África é rotineiramente citada.
A primeira situação é quando a abordagem
é sobre a colonização e o negro aparece no processo de escravidão onde é tido
como raça inferior e submisso ao colono, a segunda situação é quando a abordagem
é referente a lógica de miscigenação onde as relações entre as raças resulta em
indivíduos de peles com tonalidades variadas. A segunda situação é quando se
trata dos países cujos pilares políticos e econômicos encontram-se em estado de
calamidade, neste momento aparece a África do imaginário selvagem e de sujeitos
abandonados pelo poder público.
O que se tem observado nos
livros dos alunos de escolas iniciais ou até mesmo no ensino médio são
superficialidades, existe uma ausência de África cujo o continente é riquíssimo
em cultura, muito mais que relação com o processo de escravatura países como o
Brasil tem a expor. Existem inúmeras produções de origem africana que
possibilita o leitor (estudantes, pesquisadores, dentre outros) a conhecerem ou
se aproximarem do continente que é a África, no documentário disponível na
internet intitulado O Povo Brasileiro,
figura emblemática como Darcy Ribeiro irá retratar inúmeras relações e
apropriações culturais que os chamados brasileiros agregaram para si. Também
reportará como esse povo que durante muito tempo negou(nega) suas origens, tem
de dívidas socias, políticas e humanitárias cujo o pagamento é inatingível.
O país que se posicionava
contrário ao fim do regime escravista, se viu obrigado a se redefinir tendo em
vista a negação de suas raízes culturais. O país que ainda na atualidade (con)vive
com a propagação do mito da democracia racial exposta por Freire (2003) em sua
obra Casa Grande & Senzala. Quão problemática são as discussões sobre a
aparelhagem e resistência do racismo no Brasil, e como irônico é definir-se com
essa marca que perdura durante séculos, onde o maior esforço é o da negação.
Negar que existe o racismo, negar o quão preconceituosos são (somos) e como não
sabemos lhe dá com isso, é necessário que tenhamos um pouco de bom senso para
só então se tornar possível a integração inicial do respeito ao próximo e suas
especificidades, é preciso aprender a conviver com as diversidades culturais e
sociais com as quais o país se configura, o momento de reflexão é tardio mas
ainda assim bem vindo. Uma sociedade que se diz civilizada está longe de ser
definida em quanto tal no seu sentido pleno.
Referências:
JAQUELINE DA SILVA ROCHA, Graduanda em Licenciatura Plena em História na
Universidade Estadual do Maranhão- CESC- UEMA
ALVES, Iulo;
ALVES, Tainá. O perigo a história única: diálogos com Chimamanda Adichie. Bocc,
ubi. 2009. P.7.
FREYRE,
Gilberto. Casa-grande & Senzala:
formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal. São
Paulo: Global, 2003.
HOUNTONDJI,
Paulin J. Conhecimento de África,
conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos.
Revista Crítica de Ciências Sociais, ed.80, Março 2008. P.149-460.
HERNANDEZ, Leila
Maria Gonçalves Leite. A África na sala
de aula. In: O “novo Imperialismo” e a perspectiva africana da partilha.
São Paulo: Selo Negro, 2008.
______________. A África na sala de aula. In: O
processo de “Roedura” do continente e a conferência de Berlim. São Paulo: Selo
Negro, 2008.
MOREIRA,
Matheus; Dias, Tatiana. O que é ‘lugar
de fala’ e como ele é aplicado no debate público. Nexo Jornal, 16 jan.
2017. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/utility/search/?q=o+que+%C3%A9+lugar+de+fala> Acesso em: 26
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TED. Ideas Worth spreading. Disponível em:
< https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt>. Acesso em:
19 de Maio. 2020
Youtube. O povo Brasileiro. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=3wNOuXwvSvk> Acesso em: 2
junho. 2020
NETO, João
Francisco das Chagas. Clamores
De Quimbundo. Ideias antimetropolitanas e progressistas na Angola dos anos
1890-1910.
XXVII Simpósio
Nacional de História, Conhecimento histórico e diálogo social. Natal, vol.
1, n. 1, p. 3-9, julho. 2013. Disponível em:< http://eeh2012.anpuhrs.org.br/resources/anais/27/1364939900_ARQUIVO_Clamoresdequimbundoartigohumanistico.pdf> Acesso em: 24 de
Maio. 2020.
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ResponderExcluirRealmente a história africana nos materiais didáticos, infelizmente, ainda é feita de maneira bem superficial. Ademais, gostei da suas referências.
ResponderExcluirAtenciosamente, Edivaldo Rafael de Souza.
sim sim, Edivaldo existe uma limitação muito grande quando se trata da África,
Excluiras lacunas são imensas, mas ainda tenho grande esperança disso mudar, e a África aparecer não exclusivamente
em momentos pontuais como escravidão e/ou pobreza mas ampliando-se justamente nesse contexto cultural e
intelectual dentre outros inúmeros cenários que podem e devem ser explorados do ponto de vista histórico.
muito obrigada por seu comentário.
De acordo com a Lei 10.639/03 (alterada pela Lei 11.645/08), as escolas devem abordar a temática "História e cultura afro-brasileira e africana" no ensino de História em sala de aula. No entanto, os livros didáticos apresentam a África sob a perspectiva das doenças, da pobreza e da escravidão, o que não contempla as riquezas da cultura africana. Nesse sentido, de que forma os professores da educação básica podem discutir a História da África em sala de aula a partir das produções da historiografia africana?
ResponderExcluirMaurício José Quaresma Silva
excelente pergunta Maurício, quando tive meu primeiro estágio no Ensino Fundamental notei a dificuldade
Excluirdos alunos em falar sobre África pois a grande maioria limitava-se a perceber África apenas do ponto de vista negativo,
isso se dá por essa carência de abordagens nos livros didáticos, o que não impede os profissionais da educação juntamente
com a escola de elaborarem estratégias de projetos sobre a cultura africana, por exemplo a música que é uma ferramenta
de gosto popular, onde a interação dos alunos é quase que 90%. Na disciplina do Estágio elaboramos um recuso didático
que falava da história do RAP e do HIP-HOP, em paralelo busquei apresentar para os alunos a dança e a capoeira
os alunos gostaram interagiram e os resultados foram positivos. Estes elementos são uma pequena amostra do que pode ser feito
os alunos aprendem de diversas maneiras a criatividade acaba sendo uma atividade prazerosa e as aulas de história ficam bem
mais divertidas, pois diversifica essa maneira tradicional de ministrar. muito obrigada por sua pergunta!!
Jaqueline,
ResponderExcluira visão que temos da África é muito resultado de um registro europeu que distorceu a riqueza da diversidade das etnias africanas. Hoje já há um movimento para valorizar essas vivências e isso precisa ser apresentado, partilhado, divulgado, a exemplo de análises como a sua. Eu tenho utilizado em sala de aula alguns escritos paradidáticos, como os da professora Débora Alfaia, que tem esse olhar sensível à cultura africana.
Vale muito a pena esse aprendizado. Parabéns!
at.te
Prof. Mayara Leal
Exatamente professora Mayara, a prática da docência é um oficio que exige muito amor e respeito pelo estudo, é preciso que estejamos sempre nos reciclando para que nossos alunos sintam prazer em aprender e não encarem a aula como um sacrifício, o que gera para os profissionais da educação (ensino) desafios de manter estes alunos envolvidos nas aulas, a África é um continente riquíssimo é inadmissível que continuemos nas mesmas teclas, que já sabemos, são limitadas! E os alunos acabam tendo pouco interesse em estudar sobre, daí surge a oportunidade de nossa "intervenção" apresentar novos conceitos de África de modo que eles percebam a infinidade de possibilidade existente de compreender nossa história a partir do principio histórico inicial e não apenas deste. Gostei da sua dica sobre as produções da professora Débora Alfaia, é ótimo saber que existem pessoas interessadas em mudanças que são tão importantes para nossa didática na atuação escolar.As mudanças estão ocorrendo e isso é muito bom!
ResponderExcluirgrata por seu cometário!!