FRAGMENTOS DE LOUCURA OU DEMASIADA LUCIDEZ? COMPREENDENDO O HOSPÍCIO A PARTIR DOS CONTOS “NO QUADRADO DE JOANA” E “INTRODUÇÃO A ALDA” DE MAURA LOPES CANÇADO


EDIVALDO RAFAEL DE SOUZA 


Os hospícios brasileiros, sobretudo os do Século XX, foram retratados por diversos escritores. De maneira que, a mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993) é uma dessas personalidades. Posto isso, além de escrever o diário de hospício intitulado de “Hospício é Deus-diário I (1965)”, a autora também discorre sobre fatos relacionados aos hospícios em que esteve internada utilizando-se da escrita de seus contos que eram publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Ademais, posteriormente, esses contos viriam a ser reunidos em sua coletânea nomeada de “O sofredor do ver (1968)”. Entretanto, utiliza-se aqui como referência, a segunda edição da coletânea supracitada publicada em 2015.

Concomitantemente a isso, através de um sucinto diálogo entre a história e a literatura essa comunicação apresenta a análise e a compreensão de dois contos escritos pela escritora supracitada. O primeiro, “No quadrado de Joana” é datado de 16 de novembro de 1958. O segundo, “Introdução a Alda” é datado de 22 de agosto de 1959. Realça-se que, ambos foram escritos pela autora de dentro de instituições psiquiátricas.

Em relação ao uso de fragmentos da literatura para se trabalhar sobre determinado fato ou agente histórico, deve-se salientar que essa

“[...] questão da veracidade e da ficcionalidade do texto histórico está, mais do que nunca, presente na nossa contemporaneidade, fazendo dialogar a literatura e a história num processo que dilui fronteiras e abre as portas da interdisciplinaridade” (PESAVENTO, 2000, p. 37).

Sobre Maura Lopes Cançado, sabe-se que ela fazia parte de linhagem familiar de bom poder aquisitivo, a autora nasceu em 27 de janeiro de 1929, na cidade mineira de São Gonçalo do Abaeté. Nesse lugarejo, a família de Maura era conhecida como uma das mais ricas da região, isso, em decorrência, principalmente, das terras que seu pai possuía. Todavia, ela sofria de problemas mentais desde a infância. De forma que, ainda muito jovem ao se mudar para Belo Horizonte, começou a se internar em clínicas psiquiátricas. Logo após, mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, quando também frequentava de forma comumente os hospícios. Primeiramente, os particulares; segundamente, os públicos. Sendo que, foi dentro desses locais que ela escreveu a maior parte de sua obra.

Em relação ao conto “No quadrado de Joana”, a personagem Joana encontra-se dentro de um quadrado de onde não consegue se locomover a não ser através de linhas, calculando ângulos. Nessa passagem, é relatado sobre um muro, entende-se, portanto, que ela esteja se referindo ao pátio da instituição. Conforme Cançado (2015, p. 16) “[n]o meio do pátio, imóvel obedecendo a ordem. Não sabe por que, a palavra salta-lhe morna, insinuante como ameaça remota”.

Posteriormente, a autora identifica algo que poderia ser útil em uma possível fuga daquele lugar, segundo Cançado (2015, p. 16) “[u]m orifício no muro: meio de fuga. Para onde e por quê? Deve ter ouvido isto. Ela não se desviaria tanto da lógica, mesmo pensando num momento de descuido, e a lógica está no quadro”. Identifica-se que ao mesmo tempo em que ela vê a possibilidade de sair do hospício, ela também descreve que não havia motivos para realizar tal fuga, de maneira que, a autora se internava nesses locais por conta própria. Além disso, declarava que estava naquele lugar fugindo do mundo de fora, onde não conseguia se encaixar na vida em sociedade.

Em relação ao tempo,

“[u]m marco no novo tempo. Cumprindo um dever, fortalecida e distanciada das curvas, o pensamento quadrado no ar, quase sólido, e o olhar, reto como lâmina, sofrendo o impacto, voltando e enquadrando-se nos olhos impossíveis” (CANÇADO, 2015, p. 16).

Ademais, a autora diz que a personagem do conto sofre de esquizofrenia catatônica, esse, inclusive, foi um dos rótulos dos quais a autora foi referenciada em suas passagens por hospícios. Nesse sentido, entende-se que ela poderia ser a própria Joana, ou seja, ela poderia está descrevendo a si mesma, através de sua escrita. Nesse sentido,

“(...) quando se analisa a escrita de si de Maura Lopes Cançado, logo se identifica diferentes possibilidades e olhares sobre a própria vida da autora,uma vez que esta emerge fatos e rememorações do seu passado e tenta narrar àquilo que lhe convêm, trazendo um alto grau de subjetividade para o texto; a abordagem da escrita de Maura é característica fundamental a partir do momento em que se compõe numa mescla entre o verdadeiro
e o fictício, sendo necessária uma análise detalhada não só dos contos, mas também de outras fontes de pesquisa” (SOUZA, 2019a, p. 45).

Ademais, no conto é ressaltado que, “[a] realidade é o quadrado do pátio ainda cheio de moscas e serpentes ondeadas. A realidade é o perigo de ser levada para a cama” (CANÇADO, 2015, p. 18). Nesse trecho percebe-se que, o pátio era bem descuidado pela instituição. Ainda, de acordo com Maura, havia perigos iminentes em se está exposta sozinha no meio do pátio. Contudo, era preferível está naquele local que em seu quarto.

Já no conto “Introdução a Alda”, a escritora analisa o hospício e também outra interna, que se chamaria Auda, percebe-se que, na elaboração do conto ela substitui a letra “u” pela letra “l’ no nome da interna. Entretanto em seu livro “Hospício é Deus – diário I” ela relata a paciente, companheira de quarto como Auda. Em relação a isso, Custódio (2017, p. 32) chama a atenção de que, “(...) [p]ela linguagem, Maura é livre para conferir novos significados às palavras. Ela joga com os signos ao invés de reduzi-los a um universo já determinado”.

Em relação a interna, de acordo com Cançado (2015, p. 21) “[d]izem que ninguém mais a ama. Dizem que foi uma boa pessoa. Sua filha de doze anos não a visita nunca e talvez raramente se lembre dela”. Esse relato de abandono poderia se encaixar na trajetória de vida de diversas internas que ingressavam nessas instituições, pois muitas famílias colocavam o conviva nesses locais exatamente para que pudessem mantê-lo distante de suas vidas. Dessa forma,

“[d]entro dessas instituições fazia-se necessário cultivar laços de amizade e
companheirismo, o que pode ser enxergado como um ato de defesa e proteção, ao passo que essas relações de confiança uniam de um mesmo lado aquelas pessoas que estavam enfrentando os mesmos problemas” (SOUZA, 2019b, p. 142).

Além disso, ressalta-se que, nesse período o doente mental sofria profunda segregação por boa parte da sociedade, em consonância com Machado (1978, p. 377) “[o] louco faz seu aparecimento como um perigoso em potencial e como atentado à moral publica, à caridade e à segurança. A loucura é perigo a ser evitado das ruas da cidade. Liberdade e loucura são antônimos”.

Sobre Alda, a autora salienta,

“[p]useram-na numa cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos, de onde não pôde mais sair. Lá, todos gritam-lhe irritados, mal se aproxima, ou lhe batem, como se faz com sacos de areia para treinar os músculos” (CANÇADO, 2015, p. 21).

Em diversas passagens durante a sua escrita, Maura se refere aos hospícios em que passou como “cidades tristes”, devido ao fato de que esses locais abrigavam milhares de pessoas e tinham estruturas físicas enormes. Já os “uniformes azuis” eram a vestimenta que o interno utilizava, e em relação aos “jalecos brancos” podem está correlacionados a roupa utilizada pela equipe médica das instituições.

Ela discorre também sobre a ida de Alda ao refeitório, que era sempre levada por outras pessoas. Todavia,

“[q]uando voltava, ela sempre chegava de súbito, sem se anunciar, talvez não passando sua presença de um instante, ou durando muito, se o silêncio o permitisse. Iluminada segurava esta certeza, andando para trás, nos longos corredores do antes. Depressa seguia, sentido os puxões de cabelos, as gravatas tirando-lhes a respiração, e a necessidade de se defender, enquanto lhes amarravam um pano branco no rosto, imobilizavam-lhe os braços, jogando-a num pontapé final no quarto - forte” (CANÇADO, 2015, p. 25).

Nesse episódio, é retratado sobre agressões que eram feitas de forma comumente nesses locais. Além disso, quando alguém se rebelava contra as regras, ou até mesmo, se recusava a executar algo que era instruído por aqueles que realizavam o dito “tratamento”, isso era visto “(...) como uma atitude inábil, que acarreta punição” (LOUGON, 2006, p. 39-40). Através disso, esses indivíduos transgressores eram sempre punidos em locais como o quarto - forte. Sobre isso, segundo Goffman (1974, p. 51) “(...) os castigos enfrentados nas instituições totais são mais severos do que qualquer coisa já encontrada pelo internado em sua vida fora da instituição”.
Ainda sobre as punições, sabe-se que, a mais facciosa era o temido eletrochoque, que muitas das vezes não era utilizado como forma de “tratamento”, mas como forma de punir o interno. Em um desses episódios, Maura descreve em relação a Joana, 

“[e]ntão, presa pelos braços, atravessava uma como primeira porta. Ela sabia, ela sabia que andaria de volta, sofrendo repetido todas as fases, como num trabalho noturno rotineiro. Para ela, ela que se sustentara de variações, gastando-se tanto, quando depois de cantar até o céu ficava inerte e fria, terminadas as últimas contrações do eletrochoque” (CANÇADO, 2015, p. 25).

Salienta-se que, em consonância com Pesavento (2000, p. 41) “[r]econstruir o vivido pela narrativa é, praticamente,dar a ver uma temporalidade que só pode existir pela força da imaginação: primeiro do historiador, depois do leitor do seu texto”. Com isso, a análise da escrita da autora nesses dois contos perpassa ao simples fato de abordagem e leitura, mas também percebe-se que os contos carregam  complexas cargas subjetivas que foram usadas pela autora para dar sentido ao que ela estava vivenciando e experimentando dentro dos hospícios. Porém, isso não exclui a utilização de sua escrita para realizar a denúncia de fatos que eram realizados dentro de tais instituições. Ademais, a escritora também utiliza-se dos contos para dar voz a personagem que estavam de certo modo “invisíveis” perante a sociedade, como visto no caso de Alda.  

Conclui-se que, através dessa breve análise dos contos aqui identificados que podem ser verificáveis aspectos cotidianos que estavam presentes em instituições para doentes mentais no Brasil do Século XX. Para mais, indubitavelmente, também pode-se compreender através de fontes diversas como era o tratamento nesses locais. Bem como salientar a importância dos escritos de Maura Lopes Cançado, que além de descrever sobre a sua rotina no hospício, também utilizou-se de sua escrita para dar voz a pessoas excluídas tanto pela família quanto pela sociedade em geral. Nesse sentido, entende-se que esse texto possibilita a reflexão em torno de tais práticas. Sendo que, é realçado que nos últimos anos essas práticas passaram por diversas mudanças, graças a bastante dedicação de grupos que lutam por um tratamento mais humanizado em relação ao doente mental.  

REFERÊNCIAS:

Possui graduação em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM). É Especialista em Metodologia do Ensino de Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT). Pós-graduado em Biblioteconomia pela Faculdade Futura e graduando em Serviço Social pela Universidade Santo Amaro (UNISA). É também professor regente de aulas de História na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG). E-mail: edivaldorafael007@gmail.com

CANÇADO, Maura Lopes. O sofredor do ver. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015.

CUSTÓDIO, Márcia Moreira. A escrita de Maura Lopes Cançado: Um contraponto com a (des) articulação da linguagem do louco. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 222 p. 2017. Disponível em: <http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_11498_TESE%20COMPLETA%20%281%29.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2020.

LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização).

MACHADO, Roberto; et al.  Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção: diálogos da história com a literatura. Revista de História das Idéias, Coimbra, vol. 21, p. 33-57, 2000.

SOUZA, Edivaldo Rafael de. A escrita contista como escrita de si em Maura Lopes Cançado. Gnarus revista de História, v.10, p.41-47, 2019a.

____. Do lado de dentro do hospício: a escrita em forma de denúncia de Nellie Bly e Maura Lopes Cançado. Revista Rumos da História, v.9, p.130-145, 2019b.

13 comentários:

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  4. Caro, Edivaldo, acho muito interessante a abordagem sobre a loucura, principalmente porque a vida da autora está imbricada com os contos. Caberia em seu trabalho referências da obra História da loucura de Michael Foucault?

    Elbia Cunha de Souza.

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    2. Obrigado pela pergunta Elbia Souza. Sim. Foucault tem várias obras que destacam sobre a "loucura", os doentes mentais e os hospícios; dentre elas a História da Loucura na Idade Clássica. Inclusive, já li essa obra e a utilizei em alguns artigos. Já nesse texto por se tratar de uma comunicação preferi deixar essa discussão de forma mais sucinta e simples para melhor entendimento.

      Atenciosamente, Edivaldo Rafael de Souza.

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  5. Edivaldo, você tem informações sobre o contexto histórico da autora? Quem eram os loucos desse período e em que medida os tratamentos eram eficazes?

    Elbia Cunha de Souza.

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  6. Obrigado pela pergunta Elbia Souza. Ela teve o seu auge de escritora durante o período da década de 1960. Em relação ao contexto histórico, estava ocorrendo bastante mudanças tanto no Brasil quanto no exterior; infelizmente, o Brasil estava iniciando uma ditadura civil-militar, por exemplo. Já em relação aos doentes mentais, que nessa época eram chamados de "loucos", esses pertenciam a todas as classes sociais. Contudo, não eram somente os doentes mentais que eram internados em hospícios, haviam uma série de pessoas que íam parar dentro dessas instituições. Posto isso, o hospício era um local em que as pessoas colocavam todos àqueles que eram tidos como indesejáveis pela sociedade tida como "normal". Ademais, em relação ao chamado "tratamento" eles não eram eficazes, pelo contrário, pioravam a situação dos internos.

    Cortesmente, Edivaldo Rafael de Souza.

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  7. Grata pelos esclarecimentos.

    Att,
    Elbia Souza

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  8. Muito bom seu texto, me fez relembrar um filme que trata sobre essas questões, se chama Contos Proibidos do Marquês de Sade uma produção dirigida por Philip Kaufman, no filme o personagem é tratado de forma desumana é punido por diversas vezes, e nos faz refletir justamente sobre como as pessoas que sofrem com doenças mentais são vistas e julgadas, como o distanciamento e a internação dessas pessoas acabam sendo em certos momentos uma maneira de esconder a existência delas na vida das famílias por uma especie de vergonha ou falta de compreensão de como lidar com a situação. Na sua produção é possível perceber através do conto como a personagem se sente e a forma como ela formula os pensamentos em meio a tantas complexidades na mente. Parabéns pela análise!!

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  9. Obrigado pela leitura do texto, Jaqueline! Não conheço o filme que você citou, vou procurá-lo para assistir.

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