FUTEBOL: DE ESPORTE DAS ELITES A SÍMBOLO DA IDENTIDADE NACIONAL

PATRIK VAZ DA ROSA

Não restam dúvidas de que o futebol é o esporte mais praticado e amado no Brasil, mas isso nunca foi uma particularidade unicamente do nosso país. Desde o século XIX, o esporte já tinha uma ampla popularidade na Inglaterra e em outros países europeus, onde já existiam ligas profissionais com complexas regras e sistemas de pontos. Na virada do século XIX para o século XX, o futebol chegou ao Brasil e foi adotado como uma espécie de atividade para contemplar as práticas da alta sociedade europeia no país. A partir disso o futebol foi se popularizando, se tornando o que é hoje para o país, um esporte movido por paixões e fanatismo. O presente trabalho visa evidenciar os caminhos que levaram o futebol a se transformar de um esporte característico das elites ao esporte popular que se confunde com a nossa identidade nacional. A pesquisa foi feita através da teoria da História Cultural, teoria que segue a linha interdisciplinar, englobando elementos antropológicos e sociológicos. O historiador José D’assunção Barros define que “História Cultural é aquele campo do saber historiográfico atravessado pela noção de ‘cultura’ (da mesma maneira que a História Política é o campo atravessado pela noção de ‘poder’, ou que a História Demográfica funda-se essencialmente sobre o conceito de ‘população’, e assim por diante)” (BARROS, José D’assunção, 2003, p 1)

O futebol é sem dúvidas o esporte mais praticado no Brasil. Em qualquer rua por onde passamos, podemos observar grupos de meninos praticando o jogo de bola, onde cada um deles carrega consigo o sonho de alcançar a meteórica carreira de um jogador de futebol profissional. Entanto, o futebol nem sempre foi um esporte popular, movido pelas massas. O historiador Eliazar João da Silva analisa que o futebol, no seu surgimento no Brasil, tomou dois caminhos. Um foi a prática trazida pelos imigrantes europeus e o outro, foi o dos dirigentes endinheirados que introduziram o futebol em meio as elites, inspirados pelo modo de vida europeu. “Os esportes de modo geral, e o futebol de modo particular, fizeram parte dos ‘bons princípios e modos’ que nossa sociedade elitista aspirava naquela época.” (DA SILVA, Eliezar João. 2012, p. 2).

Com o fim do império e o início da república no Brasil, houve a necessidade da criação de uma nova identidade nacional. Para melhor contextualizar, vamos trazer o conceito de tradição inventada, Pelo historiador Eric Hobsbawm:

“Por ‘tradição inventada’, entende-se um conjunto de práticas, normalmente regulada por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de maneira ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através de repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.” (HOBSBAWM, Eric, 2009, p. 9).

A tradição inventada em questão são os costumes europeus incorporados a identidade nacional brasileira. A essência do nacionalismo é dado pelos grupos que se apropriam dele, no caso do Brasil do início do século XX, as elites. Baseando se em um suposto conceito de “civilização” existente nas sociedades europeias, as classes dominantes buscaram incorporar esses conceitos civilizatórios no Brasil, introduzindo a cultura, a música, as artes, os costumes e, como no caso do futebol, os esportes, em um país com a maior parte da sua produção na zona rural e que a escravidão acabara de ser abolida, com os ex escravos sendo negligenciados, sem qualquer direito a emprego ou moradia. Foi nesse contexto que surgiram as primeiras escolas e clubes esportivos de futebol no Brasil, financiados por empresas, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde os jovens que retornavam dos estudos na Europa podiam desfrutar de momentos em que simulavam suas vidas no velho continente, praticando o novo esporte bretão.

“No caso do Rio de Janeiro, o Fluminense Futebol Clube, é quem obteve as primeiras atenções da comunidade esportiva carioca. Tal equipe, em seus momentos iniciais, adotou uma postura radicalmente contrária à popularização do futebol, porém ao longo dos anos se constituiu como uma das principais agremiações do nosso futebol, exercendo inclusive importante papel na profissionalização do esporte bretão.” (DA SILVA, Eliezar João. 2012, p.4)

O antropólogo Roberto DaMatta analisa as relações do futebol com a sociedade brasileira, como o sentimento de nacionalismo, anteriormente exclusivo da burguesia e dos militares, e a unificação popular, proporcionando o orgulho de ser brasileiro. DaMatta afirma que no seu início aqui no Brasil, o futebol passou por conflitos de interesses, principalmente contra a velha ordem conservadora. Nesse trecho, Da Matta explica como a sociedade brasileira não acostumada com a “competitividade pacífica” teve de se acostumar com as regras do futebol, onde a derrota ficaria apenas no jogo, desprendendo-se dos valores tradicionais dos homens da época para a apreciação do esporte:

“O fato porém é que o velho esporte bretão entrava em conflito com valores tradicionais. Habituada a jogar e não a competir, a sociedade brasileira, construída de favores, hierarquias, clientes e ainda repleta de ranço escravocrata, reagia ambiguamente ao futebol. Esse estranho jogo que, dando ênfase ao desemprenho, democraticamente produzia ganhadores e perdedores sem subtrair de nenhum disputante o nome, a honra ou a vergonha. Foi preciso que essa sociedade vincada por valores tradicionais aprendesse a separar as regras dos homens e da própria partida para que o futebol pudesse ser abertamente apreciado entre nós” (DaMatta, Roberto. 1994, p 12).

Esse caráter democrático popularizou o futebol dentro do Brasil. A chance de vitória que pode ser alcançada por qualquer pessoa que praticar o jogo  caiu nas graças do povo, mesmo se tratando de um esporte ainda considerado “coisa de rico”. Os traços escravocratas ainda eram muito fortes dentro da alta sociedade, e negros não eram aceitos dentro de práticas comuns aos homens brancos. João Máximo (1999) conta que, em 1921, o próprio presidente da república, Epitácio Pessoa, “recomendou” que atletas negros não fossem convocados pra seleção brasileira que disputaria o Campeonato Sul-Americano em Buenos Aires.

“Era preciso projetar outra imagem nossa no exterior, alegava o alto mandatário. Uma delegação de futebol  não deixava de representar o país. E era absolutamente imperioso que o país fosse representado por sua ‘melhor sociedade’.” (MÁXIMO, João. 1999, p 183-184)

Uma nova página do futebol no Brasil passou a ser escrita graças a um jogador: Arthur Friedenreich. Filho de pai alemão e mãe negra brasileira, Arthur, mesmo sendo um “estranho no ninho” dentro dos grandes clubes, passou a ser aceito pela sua inquestionável qualidade, sendo superior a maioria dos atletas que enfrentava. Foi justamente no Sul-Americano de 1919, momento em que o futebol despontou como um dos grandes símbolos de união nacional, que a figura de Arthur teve grande destaque.

“Na heroica vitória brasileira sobre uruguaios, no final do Campeonato Sul-Americano de 1919, disputado no recém-inaugurado estádio do Fluminense, já havia menos de esporte que de paixão. Friedenreich marcou o gol da vitória na terceira prorrogação, foi carregado nos ombros da torcida pelas ruas da cidade, teve as chuteiras expostas numa joalheria e consagrou-se como ídolo maior, cognominado El Tigre  pelos adversários. O futebol nunca estivera tão na  alma do povo. Dali em diante, a paixão só cresceria. Torcer tornar-se-ia quase uma religião.”  (MÁXIMO, João. 1999, p 184)

A qualidade dos jogadores negros era, por muitas vezes, superior à dos atletas de grandes agremiações. Criados jogando no subúrbio, não viviam sob as amarras das regras do jogo, tendo assim a possibilidade de explorar novas jogadas, desenvolvendo um futebol mais “vistoso” e ágil, característica conhecida até hoje do futebol brasileiro. Máximo analisa que, nas primeiras décadas do século XX, as equipes que mantinham o seu caráter popular, contendo inclusive negros no seu quadro, tinham maior êxito nas competições disputadas em relação às equipes que aceitavam somente atletas pertencentes ao seu quadro de associados. Até que em 1933 houve outro divisor de águas no futebol dentro do Brasil. A profissionalização do esporte possibilitou que os clubes contratassem jogadores negros, assim podendo pagar os seus novos empregados sem “macular” o seu quadro social.

“A profissionalização aliada à grande popularidade que o esporte tinha, devido ao fato de oferecer a todos o mesmo divertimento e a mesma chance de vitória independente de quem fosse, fez com que o futebol se espalhasse ainda mais pelo país, tanto em prática quanto em torcida.” (VASCONCELOS, Amanda Ferrari, 2013, p 22)

O Futebol passou então a ser um “termômetro” de grandeza nacional. Quando a seleção brasileira entrava em campo, significa que a nossa nação estaria diante de outra em uma disputa, e somente a vitória demonstraria a nossa superioridade. Isso ficou evidenciado quando o Brasil sediou a Copa do Mundo de 1950. A derrota na final para a seleção uruguaia, dentro do recém construído estádio do Maracanã, ganhou traços de “tragédia nacional”, chaga que só foi cicatrizada quando o Brasil conquistou o tricampeonato mundial, em 1970, sendo a primeira seleção a alcançar esse feito, uma verdadeira demonstração de grandeza diante de todo o mundo.

Hoje, após 125 anos da primeira partida em solo brasileiro, o futebol é símbolo da cultura nacional. A maioria da população, mesmo pessoas que não dão tanta importância ao esporte, possui um time para torcer em competições. Torcer para a seleção brasileira em uma Copa do Mundo ainda tem o mesmo significado: Colocar em jogo a nossa grandeza e buscar a superioridade diante de outras poderosas nações, unindo a população em busca de um objetivo em comum. O esporte que nasceu como prática exclusiva da elite se popularizou, e alcançou as massas em qualquer lugar que tenha a capacidade de receber uma partida de futebol. Diante de todas as contradições de classe e discussões raciais presentes em nossa sociedade, o futebol mostrou a sua universalização no momento em que engloba naturalmente pessoas de qualquer raça, credo ou classe social, incorporando elementos culturais regionais específicos e se tornando um símbolo definitivo da identidade popular brasileira.

Referências:

Sobre o autor: Patrik Vaz da Rosa é graduando do curso de Licenciatura em História da Universidade da Região da Campanha – Campus Bagé.

BARROS, José D’assunção. História Cultural: um panorama teórico e historiográfico. Textos de História, UNB, volume 11 – n° 1 e 2, 2003, p.145-17

DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio - Notas em torno do significado social do futebol brasileiro. Revista USP, (22), 10-17. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i22p10-17

DA SILVA, Eliezar João. De esporte das elites ao esporte popular: A trajetória do futebol no Brasil. Universidade Federal da Grande Dourados,  Dourados, 2012

HOBSBAWM, Eric . A invenção das tradições. 6ª ed. São Paulo: Paz  e Terra, 2008

MÀXIMO, João. Memórias do futebol brasileiro .Estudos Avançados 13(37), 179-188, 1999 Recuperado de http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9493

VASCONCELOS, Amanda Ferrari. Futebol e identidade nacional: o ressentimento que fez de um esporte uma nação.  Monografia apresentada em conclusão ao curso de graduação de Ciência Política da Universidade de Brasília, Brasília, 2013

8 comentários:

  1. Bom dia Patrick, de que maneira você analisa o futebol como formador da identidade nacional juntamente com o samba no período da Primeira República?
    Lidiane Álvares Mendes

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  2. Olá, Lidiane. Assim, como o samba, a capoeira e outros movimentos culturais, o futebol foi um símbolo de resistência popular durante a Primeira República. Esse tipo de movimento ganha forte sentido de identificação popular no momento em que são reprimidos, como o samba foi até mesmo posteriormente, durante a ditadura do Estado Novo, quando sua prática era apontada como "apologia a vadiagem". O futebol não tomou o mesmo caminho da repressão porque era uma prática exclusiva da burguesia, nesse sentido a repressão estava na exclusão de pessoas pobres dentro dos clubes. O caráter elitista do futebol (caráter esse que vem sendo resgatado por clubes, federações e canais de televisão) foi se perdendo quando o esporte se popularizou pelos campos do Brasil, e as "peladas" já eram muito mais presentes em nossa sociedade do que os clubes fechados. Eu sou adepto da teoria de Roberto DaMatta, grande estudioso do futebol no Brasil, que diz que o futebol ganhou esse caráter popular pelo seu sentido democrático, estranho à época, no qual haviam vencedores ao mesmo tempo em que os derrotados não tinham a sua honra ferida. O ápice da identificação nacional com o futebol se dá então no momento em que, esse esporte já muito popular, tem a sua seleção nacional sendo representada em competições internacionais, jogando contra outros países de importância mundial.

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    1. Oi Patrick, obrigada pelas considerações.
      Att.: Lidiane Mendes

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  3. Muito obrigado, Mônica. E agradeço a recomendação, vai ser muito útil no aprofundamento da minha pesquisa.

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  4. Olá Patrik.
    Primeiramente gostaria de parabenizar pelo texto, como espectadora apaixonada do esporte fui trilhando seus caminhos através da sua escrita, são abordagens importantes que nos revelam o surgimento do futebol, assim como a dimensão que alcançou sendo um esporte que proporcionava a participação dos mais diferentes sujeitos. Meu questionamento é como você ver as constantes apropriações do esporte por determinados grupos que buscam se beneficiar da popularidade que determinado time possui no cenário nacional ? Seria uma forma de utilizar dessa popularidade em benefício próprio, considerando o papel que o futebol possui como aspecto de uma identidade nacional ?

    Novamente , Parabenizo pelo Texto.!

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    1. Olá, Francy. Muito obrigado pelo comentário. Respondendo a sua pergunta, eu acredito que o futebol acabou se tornando mais um produto dentro do modo de produção capitalista em que vivemos. Em diversas esferas da sociedade, o liberalismo encontra maneiras de lucrar e excluir pessoas dentro da linha da pobreza, e o futebol não fica fora dessa linha de raciocínio. É muito fácil pesquisarmos, por exemplo, imagens das décadas de 70 e 80 com o Maracanã lotado, sendo frequentado por pessoas de diversas classes sociais e muitas pessoas negras assistindo aos jogos. Hoje o futebol nos mostra o resultado de um forte processo de (re)elitização, impossibilitando essa democratização dentro dos estádios. Ingressos e produtos oficiais dos times com preços abusivos e até mesmo pacotes de pay-per-view para canais fechados, impossibilitando até mesmo que as pessoas de baixa renda possam assistir de suas casas. O resultado é o que nós vemos hoje em dia, estádios frequentados, quase que geralmente, por uma elite branca. Outra coisa que podemos observar é que muitas vezes os estádios ficam muito longe de completarem a sua capacidade de espectadores, e ainda assim as diretorias dos clubes se negam a vender lugares por preços populares, mantendo assim essa segregação social dentro dos estádios.

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  5. Olá Patrik,
    Parabéns pelo trabalho. Confesso que não gosto nenhum pouco de futebol. Entretanto, estou ciente da pertinência em estudar o assunto, visto que ele envolve questões culturais, mercado, discussões de gênero, masculinidades, racismo, política, dentre outras questões imersas ao nosso cotidiano. Para pensar em outras pesquisas, ou, caso queira trazer algumas considerações sobre questões já identificadas no seu trabalho. De que forma podemos pensar as masculinidades no futebol? Além do machismo, transfobia, homobofia, dentre tantas outras questões que também estão imersas e interseccionam com o racismo. Em relação a esses pontos, é possível apresentar uma "masculinidade "dominante"" no futebol de 1970? E no de hoje? att

    Elenice de Paula

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    1. Olá, Elenice. Muito obrigado pelo seu comentário. Vou lhe confessar que nessas minhas pesquisas iniciais ainda não me aprofundei em questões de gênero dentro do futebol, mas com certeza podemos afirmar que o futebol se encaixa dentro dos conceitos de nossa sociedade patriarcal. É normal ler em entrevistas em que jogadores admitem que há sim vários atletas homossexuais dentro do futebol, mas que tem medo de sofrer com a homofobia e o machismo. Envio aqui um link mostrando um exemplo https://esporte.ig.com.br/futebol/internacional/2018-10-03/jogadores-homossexuais-espanhol.html
      E atletas do futebol feminino estão longe de ter os mesmos privilégios de atletas do futebol masculino, onde inclusive dentro de clubes grandes a diferença salarial é absurda. Até mesmo as grandes craques de nível internacional recebem muito menos do que alguns jogadores medianos.Falta muito apoio financeiro, midiático e público para o futebol feminino crescer. Claro que a diferença para alguns anos atrás é positivamente boa, mas ainda está muito longe de ser a ideal. São questões que estão encravadas culturalmente na sociedade, e só uma reeducação social poderia mudar esse cenário, o que no curto prazo parece muito difícil de acontecer.

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