TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA: UMA FONTE HISTÓRICA LEGÍTIMA DO FINAL DO SÉCULO XIX PARA ENSINO DE HISTÓRIA

ELBIA CUNHA DE SOUZA

Introdução

Um dos desafios para o professor de História no ensino básico está em proporcionar atividades práticas aos alunos para que percebam o verdadeiro ofício do historiador ao pesquisar uma fonte. Para tornar esse exercício uma realidade em sala de aula as obras literárias, se apresentam como um interessante e envolvente documento histórico, pois elas permitem diversas leituras dependendo daquilo que se deseja buscar, podendo revelar valores, sentimentos, anseios, denúncia, crendices e muitas outras experiências que tornarão o estudo da disciplina História muito mais dinâmico.

Este trabalho apresenta especificamente a obra literária Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, como uma fonte histórica legítima para investigação das últimas décadas do período Brasil Império no século XIX e início do século XX, é uma obra que possui peculiaridades pertinentes que poderão ser analisadas por estudantes em sala de aula. Este romance permite ainda descobrir diversas informações que ajudarão os discentes a conhecerem uma boa parte dos discursos histórico e social da época, principalmente porque o autor que produziu esta obra vivenciou consequências reais desse contexto histórico. Nessa perspectiva Sandra Pesavento afirma que “A Literatura, como se sabe, é sempre fonte de si mesma, ou seja, diz sobre o presente da sua escrita e não sobre a temporalidade do narrado” (PESAVENTO, 2003, p.39)

É importante salientar que obras literárias têm seu valor social e que dependendo da interação do leitor com a obra, sua função literária fica muito mais abrangente. Porém como documento histórico em sala de aula, será necessária uma didática que possibilite observar questões para além da leitura de entretenimento, um planejamento que oriente os discentes a uma investigação dos discursos que perpassam por contextos políticos e social. Nessa perspectiva ao final deste trabalho há duas propostas didáticas para o uso de obras literárias como fonte histórica, as propostas sugeridas podem ser adaptadas de acordo com as necessidades de cada turma.

Lima Barreto: um autor do final do século XIX e início do século XX

Afonso Henriques de Lima Barreto era filho de pai português e mãe escrava, nasceu no Rio de Janeiro, a 13 de maio de 1881. Ele cursou a metade do curso de Engenharia na Escola Politécnica, mas abandonou para cuidar de seu pai, que enfrentava distúrbios mentais. Sua trajetória é marcada por perdas e tristezas, mas essas dificuldades não o impediram de escrever grandes obras, possivelmente suas experiências serviram de inspiração para a criação de seus romances. Segundo José de Nicola (2011), Lima Barreto era “Mulato, pobre e socialista, vítima de toda espécie de preconceitos, com o pai louco, viveu intensamente todas as contradições do início do século XX e passou por profundas crises depressivas” (DE NICOLA, 2011, p.419).

Trabalhou na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra e colabora no jornal com a carreira de romancista. Teve problemas com álcool e demência precisando ficar algumas vezes internado no hospício. E apesar de ter uma vida turbulenta, “Escreveu os seguintes romances: Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policarpo Quaresma (publicado em folhetins no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1911) [...]” (MOISÉS, 2005, p.356). Não apenas esses, mas publicou muitas outras obras que só foram reconhecidas após sua morte em 1922.

Vale ressaltar que esse é um período histórico bastante conturbado na República Brasileira, e essas tensões vividas tanto em sua vida pessoal quanto na política, algumas vezes aparecem em suas obras. Lima Barreto traz essas tensões para sua escrita, alguns desses dramas são descritos em seus romances, crônicas, e artigos de forma crítica, outras vezes com humor, ou ainda de forma analítica. A trajetória literária produzida por ele denuncia as condições desumanas que os negros eram submetidos no Brasil após a abolição da escravatura, apontam para os discursos raciais da época e injustiças sociais. Muitas de suas experiências vividas foram transformadas em ficção.

Fonte legítima: Triste fim de Policarpo Quaresma

A obra Triste fim de Policarpo Quaresma conta, de maneira irônica e melancólica, a história de um personagem ingênuo, major que vive no subúrbio e exerce a função de subsecretário no Arsenal da Guerra, é um Patriota idealista, fanático e visionário, ridicularizado às escondidas pelos colegas. Policarpo Quaresma é nacionalista que gosta profundamente das coisas brasileiras, e não negocia suas convicções.

O livro divide-se em três partes: Projeto nacionalista, Projeto agrícola e Projeto político. A partir dessa divisão é possível perceber questões sobre a sociedade do inicio do século XX como o nacionalismo e regionalismo, a valorização da cultura nacional, os problemas agrários, os preconceitos, a natureza, injustiças sociais, burocracias, interesses pessoais e políticos.

“[...] Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor à pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar foi num conhecimento inteiro do Brasil, [...] (BARRETO, 2003, p. 12)

Esse texto literário é pertinente ao Ensino de História, pois direciona para um contexto social onde o discurso de civilização, progresso e teorias raciais refletiam também na Literatura, embora Lima Barreto faça a crítica de maneira cômica fica evidente na obra que as diferenças raciais eram acentuadas e silenciamentos eram mantidos. É interessante perceber que entre seus personagens fictícios, há também um personagem histórico - Marechal Floriano Peixoto – e ainda locais históricos, como O Arsenal da Guerra, O bairro de São Januário, entre outros. E nesse contexto literário o autor aborda sobre autoritarismo, manipulação, injustiças que são temas recorrentes do século XXI.

Outro aspecto interessante que pode ser explorado em sala de aula a partir dessa obra é a crítica que Lima Barreto faz a educação recebida pelas mulheres, no romance ele destaca a autenticidade da personagem Olga Coleoni, afilhada de Policarpo, essa personagem foge do padrão da maioria das mulheres de sua época, embora cumpra alguns costumes da maioria das mulheres. Mas é bem possível fazer uma análise de cada personagem feminina e perceber o olhar do autor sobre a realidade das mulheres no período em que a obra foi escrita. Sua perspectiva em relação a figura feminina abrange várias faces das mulheres da época, que vai desde a moça ingênua e romântica até a independente e livre das amarras da sociedade.

Assim vale ressaltar que essa obra é um documento importante para ser explorado como uma fonte histórica em sala de aula, pois possui questões relevantes sobre o período da Primeira República no Brasil. São aspectos que contribuem para a análise dos contextos históricos políticos, econômicos e principalmente, sociais, pois essa é uma característica do autor, expor realidades embora seja de forma fictícia . Essa obra literária cumpre sua função em denunciar as explorações, o preconceito racial, e ainda criticar muitas outras atitudes ruins naturalizadas naquela sociedade. Segundo a historiadora Sandra Jathay Pesavento (2003)

“Seja a Literatura de cunho realista, dispondo-se a dizer sobre o real por forma da observação direta, fruto da vivência do escritor no seu tempo, seja por transfiguração fantasmática e onírica ou de criação de um futuro aparentemente inusitado, seja pela recuperação idealizada de um passado, distante ou próximo, a Literatura é sempre um registro - privilegiado - do seu tempo” (PESAVENTO, 2003, p. 40).

Em defesa do documento legítimo

Há no canal do YouTube uma entrevista da jornalista Mônica Teixeira com o professor Sidney Chalhoub que fala sobre a importância da literatura para os historiadores, entre as falas do professor vale ser ressaltada sua afirmação de que “Não existe Literatura fora da História e ela pode ser lida como intuito de interpretar a História” (UNIVESP, 20015). O professor afirma ainda que como historiador, ele está mais interessado em entender as experiências dos sujeitos na sociedade do século XIX. Com base nesta afirmativa o presente artigo mais uma vez reforça importância do romance literário Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, como fonte histórica legítima.

Sandra Pesavento (2003) também defende a utilização da Literatura como fonte histórica, ao afirmar que

“[...] se o historiador estiver interessado em resgatar as sensibilidades de uma época, os valores, razões e sentimentos que moviam as sociabilidades e davam o clima de um momento dado no passado, ou em ver como os homens representavam a si próprios e ao mundo, a Literatura se torna uma fonte muito especial para seu trabalho” (PESAVENTO, 2003, p. 39).

Chalhoub (2003), em seu trabalho, Machado de Assis, Historiador, apresenta a importância desse literato para a sociedade brasileira ao afirmar que “Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil do século XIX (2003, p.17)”. Nesse trabalho Chalhoub relata que estava inconformado com a carência de informações mais diretas sobre as ideias políticas e sociais do romancista e por isso fez uma investigação em diversos documentos e literaturas, expõe ainda que os três primeiros capítulos de sua obra são para interpretar por meio dos romances de Machado de Assis o sentido das mudanças históricas do período na visão do romancista.

Observa-se a partir desses autores que História e Literatura podem caminhar juntas, mas devem ser ressaltadas suas distinções em relação a realidade de cada período. Pois segundo Pesavento (2003, p.37) “A rigor, História e Literatura obtém o mesmo efeito: a verossimilhança, com a diferença de que o historiador tem a pretensão da veracidade”, portanto é de suma importância que ao utilizar um romance literário como fonte histórica não deixem de analisar seu contexto, os discursos que prevalecem a partir de cada autor, e ainda perceber também quais diálogos estão refletem a sociedade em estudo. Desse modo, trabalhar com esse documento histórico requer de professor e aluno uma boa análise e pesquisas para que se obtenha uma boa investigação.

Propostas para o uso de literaturas como fonte

As propostas didáticas abaixo tem como objetivo incentivar docentes a utilizarem obras literárias como documentos históricos. Vale ressaltar que as proposições podem sofrer alterações de acordo as necessidades e características de cada turma. O romance de Lima Barreto pode ser adquirido em formato de PDF na Biblioteca virtual Domínio Público, ou nas bibliotecas das escolas.

PROPOSTA I

1º MOMENTO

ü Solicitar a leitura da obra de Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, com vinte dias de antecedência.

2º MOMENTO

ü Após os vintes dias os alunos deverão entregar uma resenha crítica do texto destacando qual momento da obra lhe chamou mais atenção.
ü No mesmo dia da entrega da resenha as turmas serão divididas em grupos de até cinco participantes para um jogo de perguntas, respostas e prendas. A intenção de fazer o jogo tem como objetivo fixar mais detalhes do livro lido.

3º MOMENTO

ü Outro momento da atividade em grupo será de analisar a obra mais criticamente em uma roda de conversa.
ü A equipe terá ainda que pontuar questões da obra que se relaciona com o conteúdo da Primeira República, o grupo deverá analisar quais fatos políticos, econômicos e sociais podem ser percebidos na obra.
ü Cada grupo apresentará um mapa mental sobre as questões investigadas.

4º MOMENTO
ü Cada grupo deverá também fazer um podcast de fatos atuais que se relacionam com texto lido, ou seja, pontuar permanências na sociedade do século XXI.

PROPOSTA II

A atividade poderá ser realizada em interdisciplinaridade, com a disciplina de Literatura, pois os períodos históricos e literários podem ser trabalhos em conjunto.

     1º MOMENTO

ü Solicitar a leitura da obra de Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, com vinte dias de antecedência.

2º MOMENTO

ü Após os vintes dias os alunos deverão entregar uma resenha crítica do texto, destacando o contexto histórico e a vida do autor.
ü Os alunos assistirão ao filme que é uma adaptação da obra, Policarpo Quaresma – Herói do Brasil, com Paulo José e Giulia Gam e direção de Paulo Thiago, de 1998.

3º MOMENTO

ü Divididos em grupo de até quatro alunos deverão pontuar em uma roda de conversa semelhanças e diferenças entre a obra escrita e a adaptada para filme.
ü Ainda na roda de conversa fazer debates sobre temáticas apresentadas na obra como: o papel da mulher na sociedade, o nacionalismo, tirania na política, entre outros que podem ser observados pelo professor.

4º MOMENTO

ü Exposição de um Sarau Histórico Literário onde os grupos poderão expor em forma de paródias, documentários, peças teatrais, monólogos a vida do autor, o contexto em que a obra foi escrita, descrições dos personagens, permanências, conceitos históricos.

As duas propostas podem ser utilizadas para determinar o conceito avaliativo dos alunos, podem ser avaliados de acordo com a participação individual e nos grupos.
        
Considerações finais

As literaturas são possibilidades muito interessantes para a utilização de fontes no ensino de história, podem ser utilizadas para envolver o aluno no contexto histórico em que está estudando e ainda aproveitar a trama narrativa para destacar os costumes e os valores de uma época distinta da sua, entre outras possibilidades. Possivelmente para cada conteúdo estudado há literaturas específicas que podem ser aproveitadas de forma dinâmica e envolvente.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. Companhia das Letras. São Paulo, 2003.

DE NICOLA, José. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. 18ª ed. São Paulo: Scipione, 20011

MOISÉS, Massaud. A Literatura através dos textos, S. Paulo, Cultrix -1971; 25ª ed. 2005.

ORMUNDO, Wilton. Se liga na língua: Literatura, Produção de texto, Linguagem. 1ª Ed. São Paulo: Moderna. 2016.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como Texto: leituras da História e da Literatura. História e Educação. Pelotas.  p. 31-45, 01 de set. 2003.

UNIVESP. História: História e Literatura – Sidney Chalhoub. Youtube, 5 de maio de 2015. Disponível em<https://www.youtube.com/watch?v=e5jnTFQg6as>. Acesso em 09 jan.2018.

6 comentários:

  1. Parabéns professora Elbia pelo texto juntamente com as propostas. Ao longo das experiências em sala de aula, como os alunos reagiram a questão da literatura no ensino de História? E principalmente como compreenderam a questão do período Oitocentista dentro da literatura?

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  2. Olá, Mônica,obrigada pela pergunta.
    Alguns autores que abordam essa temática, mas não citei nesse trabalho são:
    1- Circe Bittencourt - Ensino de História: fundamentos e métodos.
    2- Gabriela de Lima Grecco - História e Literatura: entre narrativas literárias e históricas, uma análise do conceito de representação.
    3- Ernesta Zamboni e Selva Guimarães Fonseca - Contribuições da Literatura infantil para a aprendizagem de noções de tempo histórico: leituras e indagações.
    4-Maria Ângela de Faria Grillo - A literatura de cordel na sala de aula.
    É importante acrescentar que há trabalhos que utilizam as literaturas como fonte e defesa de suas teses, como as obras das autoras:
    1- Jussara Bittencourt Sá - Nação cena: Brasil, teatro, século XIX;
    2 - Luciana Murari - Natureza e cultura no Brasil.
    Com certeza existem outros autores, mas espero ter ajudado com esses.
    Att,
    Elbia Cunha de Souza.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Caro, Elber Soares, agradeço os questionamentos.
    Bom, vale ressaltar que infelizmente ainda não tive a oportunidade de abordar a Literatura no Ensino de História. Mas na graduação de História tivemos algumas disciplinas com o professor Wesley Kettle em que sempre tínha uma ou duas literaturas em sua didática o que foi inspirador para a construção das propostas apresentadas no texto.
    Minha experiência é apenas com as estéticas literárias, mas sempre aproveito para dar ênfase no contexto histórico dos autores e das obras.
    Há muitas literaturas disponíveis do final do período oitocentista, pois esse é um momento muito intenso no Brasil, tanto no contexto histórico quanto literário. E acredito que você enriquece a aula a quando traz uma literatura para as abordagens históricas.

    Att,
    Elbia Cunha de Souza

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  5. Parabéns Elbia Souza pelo texto.
    Realmente é enriquecedor fazer o diálogo da História com a Literatura,pois isso só vem agregar ao aprendizado dos alunos. Inserir novas fontes nas aulas tende a contribuir para que eles compreendam a importância da prática do historiador.

    Meus Parabéns!!!

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